Ao revisitarmos uma memória, nossa mente a altera. Ao passar dos anos (e revisitas) sobra-se mais fantasia que realidade. Na última conversa que tive com meu pai, ele estava no sofá da sala, com a TV ligada. Ignorando William Bonner, me perguntou: “Quando sai o resultado do vestibular?”, e após a pausa de um caricato fleumático, emendou: “qual seu sabor de pizza favorito mesmo?”
Após sua morte, apeguei-me que ser uma boa profissional era meu maior objetivo de vida. Devia ser inteligente como ele, excepcional, fora da curva. Superá-lo - foi o que meu pai tinha me deixado para fazer!
Acontece que quando o fracasso chega (e ele sempre vem) a dor que sinto é desproporcional. Por que dar com os burro n’agua é tão doloroso, como se o mundo perdesse o sentido de ser o que é?
O curioso é que não encontro fragmentos. Uma fala, um olhar ou qualquer sinal de que esse era o desejo de meu pai - para mim. Ele nunca me disse como eu deveria ser, ao menos não em termos práticos e objetivos. Eu não me lembro de meu pai dizer que eu precisava ser uma boa psicóloga. Aliás, nunca me disse para eu ser psicóloga (isso é coisa minha). Ele apenas apostava nas minhas ideias, e essa foi apenas mais uma - de várias.
Caralho, eu inventei essa história? Estou competindo com alguém que nunca me elegeu como rival...
Naquele momento tão triste da minha vida, por tê-lo perdido, me apeguei a esse desejo de ser excelente. Foi o único motivo, mesmo que forjado, para seguir a vida. O problema se deu quando estou há quase uma década acreditando que para eu caber em algum lugar, eu preciso ser excepcional.
É muito tempo para andar em círculos, como um cachorro que corre em torno se si, pertubado com a própria existência.
E agora, quando retorno a cena, tanta e tantas vezes, Adalberto permanece no sofá, e o diálogo me parece intacto: na mesma frase em que cita o mal dito vestibular, questionava um sabor de pizza. Talvez seja isso que devo me apegar: “apenas gosto de conversar com você!”