Hoje é meu aniversário. Na beirada do dia minha infância parecia a Capela Sistina no Vaticano - não importa quantas múmias do Egito tenha, o fluxo natural leva ao afresco no teto. Em todo compromisso meu, a primeira divagação me transportava ao início dos anos 2000.
Lembro de uma tarde em que não houve aula e a pequena TV e o Super Nintendo eram meus melhores amigos, dentro do quarto que eu dividia com meu irmão. Desenvolvi uma predileção pelas plataformas e há um truque comum nesses jogos: ao final de uma grande fase, é presenteado com um novo poder, que o incentiva a percorrer as fases anteriores, devido uma diferença - poderá saltar blocos altos, que na primeira vez deixou pra lá. Poderá destruir paredes que a princípio sequer foi vista. Irá entusiasmar-se ao jogar a mesma coisa, observando agora os sinais ignorados.
E como quem retorna para às múmias egípcias, o ano é de 2024. E como quem recebe um agrado de aniversário, recebi o diagnóstico de TEA, no marco zero dos meus 31 anos. Me parece meio fora do time, devo confessar. Os comandos sociais - todos decorados (ao menos na minha cabeça estão). Enfrento grandes vilões organizacionais - talvez com tédio. Mas ao fim dessa fase, do décimo terceiro mundo, houve um floreio maior, pois ganhei a bota saltadora de blocos altos; a armadura que quebra paredes; ou melhor dizendo, os óculos de Rubem Alves:
"O que é uma teoria? Teorias são óculos feitos com palavras para ajudar os olhos a ver o que normalmente não veem. Os olhos veem o mundo de um jeito. Usando os óculos da teoria a gente passa a ver o mundo de uma maneira diferente (...) (Texto: Peixinhos e Tubarões).
E no afresco das paredes do passado, confesso ser meio angustiante as novas lentes. Vejo que fui uma convidada complicada para os anfitriões, devido a minha restrição alimentar. Sempre os vi com desdém. Hoje, vejo como carinho - adultos que queriam incluir uma criança aparentemente mimada, por consideração aos meus pais. Vi alguém cozinhar algo exclusivo para mim, na casa das dezenas de vezes. Obrigada!
Vejo que minha seletividade por alimentos abrangeu também pessoas. Me apego a um membro e ignoro todos os outros. A casa das dezenas torna-se centenas. Nunca pergunto como estão e hoje me pergunto quantas pessoas não saíram da minha vida por falta de reciprocidade. É como se eu acompanhasse vidas pelo borrão do olho mágico da porta. "Casou-se?", "teve filhos"?, "Mudou-se?" resume minha espontânea participação. Participação que atinge seus picos com foto de bebê e convites dos eventos infantis, em que nunca entendia "mas eu não gosto dessas coisas". Eu nunca reparei que minha prima era também uma mãe cansada, mas que encontrava tempo para não deixar nosso contato morrer. Mesmo que eu raramente compareça - ela simplesmente não esquece de mim. Como não vi isso?
Me lembro de, na adolescência, implantar a ditadura do silêncio com certo orgulho. Eu tinha vestibular e qualquer pouso de mosca me incomodava. Fiz minha mãe passar as tardes fora de casa, acreditando que seu jeito de respirar era barulhento demais. Fiz minha vó surda modular a voz para falar cochichando, aos sessentas anos. Me perdoem por isso!
Vejo que era melhor o silêncio ao barulho. Era melhor menos gente do que muita gente. Era melhor a parte que a casa se esvaziava das visitas e o gatinho medroso reaparecia com sede. Vejo que isso não era modos e lamento por minha mãe ter que explicar esse meio jeito. Explicar o que era inexplicável.
E agradeço meus bons e poucos amigos, pelo cuidado em não ultrapassar a sensibilidade do meu mundo interno e fechado, mesmo não havendo um pedido claro sobre isso. A minha chefe que me acolheu e não achou que minha irritação com ruído fosse uma desculpa estapafúrdia (pois que parecia - parecia!). Ao meu irmão que contrapunha ao meu jeito e equilibrava os ares de nossa família!
Ao meu pai e minha mãe, por terem me amado do jeito que sou.
Desejo que daqui para frente, as coisas sejam mais leves. Esse é meu soprar de velas.