Alucinação Musical é uma alucinação de audição de tons musicais e melodias e é relativamente rara. Pode ser contínua ou intermitente, com consciência clara do sujeito. Ocorre em pessoas com déficit auditivo, doença neurológica, depressivos e idosos.
Dito isso, o relato que trago é de minha avó, uma senhora de sessenta e cinco anos que teve perda parcial da audição ainda jovem, no pós-parto de seu filho caçula. As causas neurológicas são desconhecidas, apenas sabe-se que ela ouve muito pouco e virou hábito gritar para que escute.
Basta dormir na mesma casa que minha vó, para logo saber que comumente ela canta durante a noite, músicas inteiras e por períodos prolongados. Acorda sempre sem lembrança do acontecido.
Também há situações que ela acorda, convicta, queixando-se do vizinho adolescente, pois "deram festa com som alto", falava ela. Eu que estava em casa em alguma dessas noites, afirmo ter sido silenciosa e sem ruído algum. "Como pode ser tão implicante", pensava eu.
Em outros momentos, acordava ela com entusiasmo, pois ouviu pela noite, em seu quarto, os cânticos da capela que frequentávamos dominicalmente. A capela em questão fica no mínimo à 5 quilômetros de nossa casa, e alguém que mal escuta o que é dito a menos de um metro de seu ouvido, jamais ouviria com nitidez o que foi cantado a quilômetros. Para minha mãe é um milagre - Deus havia deixado um desejo para uma pobre surda - de que ouvisse sua música favorita!
E foi no início do ano de 2017 que li o livro de Sacks (1997), autor em que gosto muito. Ali pelos últimos capítulos, veio o tópico “Reminiscência” e nele o autor conta casos como a da Sra O.C e O.M, que chamarei aqui de Simone e Francisca.
Simone tinha oitenta e dois anos, de ótima saúde e era meia surda. Após ter um sonho lúcido de sua infância vivida na Irlanda, acordou ouvindo música em claro e ensurdecedor som. A paciente em primeiro momento pensou ser um sonho, e depois de ter certeza de que estava acordada, pensou ser um rádio. Contudo, ficou intrigada de o porquê ser a única a ouvir tais música, todas irlandesas e especialmente aquelas em que ela cantava e dançava quando mais jovem, sem pausas para anúncios, o que era comum em rádios. A situação perdurou por dias, onde cogitou de que a música estava somente em sua cabeça. Primeiro consultou seu otologista:
"(...) acho que não são os seus ouvidos. Um simples tinido, zumbido ou estrondo, talvez; mas um concerto de canções irlandesas — isso não vem dos seus ouvidos", e prosseguiu, "talvez fosse bom a senhora procurar um bom psiquiatra". (Sacks, 1997, p. 134).
No mesmo dia foi ao psiquiatra:
"não é sua mente. A senhora não está louca — e os loucos não ouvem música, ouvem apenas 'vozes'. A senhora precisa procurar um neurologista, meu colega, doutor Sacks. E foi assim que veio me consultar”. (Sacks, 1997, p. 134).
Segundo Sacks (1997), Simone chega em seu consultório lúcida e atenta, sem sinal de febre e sem tomar nenhum medicamento que pudesse desequilibrar sua mente excepcional. Tinha muita dificuldade de ouvi-lo, tanto por ser surda, tanto pelas músicas, aproveitando as pausas suaves para tentar conversar. A paciente perguntou se podia ser um derrame, mas Sacks (1997) faz um eletroencefalograma.
"Ela estava ouvindo apenas trechos ocasionais e breves de música, mais ou menos uma dúzia de vezes ao longo do dia. Depois de a termos instalado e aplicado os eletrodos em sua cabeça, pedi a ela que ficasse quieta, não dissesse nada e não "cantasse para si mesma", mas que erguesse ligeiramente o dedo indicador — o que, por si só, não perturbaria o EEG — se ouvisse alguma de suas músicas enquanto fazíamos o exame. No decorrer de duas horas de registro, ela ergueu o dedo em três ocasiões, e cada vez que fez isso os marcadores do EEG chacoalharam, transcrevendo espículas e ondas pronunciadas nos lobos temporais de seu cérebro. Isso confirmou que ela estava realmente tendo convulsões nos lobos temporais, as quais, como Hughlings Jackson intuiu e Wilder Penfield provou, constituem a base invariável da "reminiscência" e alucinações experiências. Mas por que ela teria manifestado subitamente esse sintoma estranho? Mandei fazer uma tomografia do cérebro, e esta revelou que ela de fato tivera uma pequena trombose ou infartação em parte de seu lobo temporal direito. O súbito aparecimento de canções irlandesas durante a noite, a repentina ativação de traços de memória musical no córtex eram, aparentemente, a consequência de um derrame e, quando este se resolveu, as canções também se "resolveram". (Sacks, 1997, p. 135).
Tempos depois, quando a música já tinha desaparecido para Simone, Sacks (1997) pergunta sobre o que achava disso. A paciente diz ser um alívio e de que não conseguia mais recordar de como eram as músicas e que de certa forma elas trouxeram uma parte de sua infância.
Já Francisca estava na casa dos oitentas anos e era um pouco surda. Ela ouvia músicas na cabeça, as vezes alguns zunidos e “vozes”, e várias ao mesmo tempo, não conseguindo entender o que elas diziam. Ao consultar com Sacks (1997), descreveu um momento que ao cozinhar, passou ouvir músicas com rápida sucessão e que consegui facilmente listar quais músicas eram. Ao contrário da Simone que se recuperou em algumas semanas, para a Francisca a música prosseguiu e cada vez pior.
O interessante do caso de Francisca é de que ela conhecia todas as músicas, porém não gostava delas. Prosseguiu ouvindo de quatro a cinco músicas por dia, pelo período de um ano. Ao fazer o eletroencefalograma da Francisca, "foram registradas voltagem notavelmente alta e excitabilidade em ambos os lobos temporais — as partes do cérebro associadas à representação central de sons e música e à evocação de experiências e cenas complexas. E sempre que ela "ouvia" alguma coisa, as ondas de alta voltagem tornavam-se acentuadas, semelhantes a espículas e manifestamente convulsivas. Isso confirmou minha ideia de que ela também tinha epilepsia musical, além de doença dos lobos temporais". (Sacks, 1997, p. 138).
Sacks (1997) faz aqui um questionamento sobre a chamada epilepsia musical dessas pacientes. Há uma contradição em termos. A música normalmente é rica de sentimento e sentido, algo profundo que há em nós (Sacks, 1997). Por outro lado, a epilepsia musical traz o oposto: um evento fisiológico grosseiro e aleatório (Sacks, 1997).
Devemos escolher um e descartar o outro?
Foi assim que me deu um “click”, aquele que se dá quando a realidade mostra uma outra faceta. Percebi que chamar o fenômeno que minha vó vivia, de implicância, era um reducionismo rude. E aquilo que minha mãe chama de milagre, foi sem dúvidas um dos melhores simbolismos que poderia ganhar a alucinação ou epilepsia musical.
E foi assim que perguntei para a protagonista de nossa história, qual o conteúdo dessas músicas que ela tanto ouvia.
Mandacaru, quando fulora lá na seca/ É sinal de que a chuva chega o sertão/ Toda menina que enjoa da boneca/ É sinal que o amor já chegou no coração/ Meia comprida, não quer mais sapato baixo/ Vestido bem cintado não quer mais vestir gibão. (Gonzaga & Dantas, 1953).
Música que o vizinho adolescente tocava, em alto e bom som, ao fazer festa em sua casa em 2016.
Texto dedicado para minha vó Benedita. Esse é meio jeito de demonstrar amor.